PARA SEMPRE HOBSBAWM

Estava incapaz de escrever, quando o maior historiador de todos os tempos se foi... Achei muito interessantes os textos a seguir: o primeiro foi retirado do site da Revista de História da Biblioteca Nacional; o segundo é um apanhado das principais obras de Eric Hobsbawm; e o terceiro é a carta aberta da ANPUH (Associação Nacional de História) à revista Veja, cuja matéria sobre a morte do historiador só fez denegrir sua imagem e legado às custas de uma crítica barata ao intelectual.
Vale a pena conferir essa homenagem tardia de nosso humilde blog...


Morreu na manhã desta segunda (1) o historiador marxista Eric Hobsbawm, britânico de origem judaica, em Londres, aos 95 anos. Hobsbawm estava com pneumonia e não resistiu ao tratamento.

De acordo com comunicado divulgado por sua família, Hobsbawm deixa "não só sua mulher dos últimos 50 anos, Marlene, seus três filhos, sete netos e um bisneto, mas também seus milhares de leitores e pesquisadores no mundo todo". Autor de Era dos Impérios, Era das RevoluçõesEra dos Extremos e Globalização, Democracia e Terrorismo – entre muitos outros –Hobsbawm revolucionou – de fato – a historiografia e a interpretação da História sobre o nosso tempo. 

Relevante e fundamental

Poucos historiadores tiveram o privilégio e a lucidez de refletir sobre sua própria época. Britânico, nascido em Alexandria, no Egito em 1917, Hobsbawm passou seus primeiros anos em Viena, nas ruínas do último grande império europeu, o Habsburgo. Ainda criança se muda para Berlim, onde permanece até vitória do partido nazista em 1933. Quando a Segunda Guerra Mundial teve inicio - já historiador e membro do Partido Comunista Britânico - colaborou com os serviços de inteligência e integrou o Royal Army Educational Corps, uma divisão responsável pela instrução e educação dentro do exército.

Na década de 60, se relaciona com a privilegiada geração de historiadores marxistas ingleses, como Christopher Hill e Edward Thompson. Seu interesse pelo trabalhismo o leva a estudar as revoluções burguesas do século XIX. Nascia a preciosa série dividida em eras: Revoluções (1789-1948), Capital (1848-1975), Impérios (1875-1914). Bibliografia obrigatória dos cursos de História de todo mundo, seus trabalhos sobre o período ainda foram acrescidos de dois livros fundamentais sobre História Moderna: A Invenção das Tradições (1983) e Nações e Nacionalismo desde 1780 (1991).

Seu trabalho mais marcante, no entanto, viria com “A Era dos Extremos” de 1991. Coincidindo com boa parte do seu tempo de vida, o historiador se coloca no papel de testemunha do mais interessante e sangrento século da história, como costumava dizer. Ele divide o período em três eras. A primeira, a da catástrofe, marca as duas grandes guerra, o surgimento da União Soviética, a crise econômica de 1929 e o aparecimento dos fascismos. A segunda, nas décadas de 50 e 60, chamada de anos dourados, período de grande expansão econômica do capitalismo. Por fim, entre 1970 e 1991, o desmoronamento final, quando os sistemas ideológicos e institucionais caem por terra.

Hobsbawm viveu muito, mas parece pouco frente à magnitude de sua obra. Foram mais de 30 livros, alguns sobre paixões pessoais, como “A História Social do Jazz” (1989), outros como reafirmação de sua coerência ideológica, como seu último, “Como mudar o mundo: Marx e o Marxismo” (2011). Nos últimos anos, permaneceu ativo e publicando muito. Em 2002 lançou sua autobiografia, “Tempos Interessantes”. Cinco anos depois, alguns ensaios que incluíam análises pontuais sobre o mundo pós 11 de setembro. Sua morte, aos 95 anos, deixa gerações de historiadores órfãs de um dos historiadores mais lidos e influentes do último século.



Daí li esse texto maravilhoso da minha professora de Contemporânea II na UFF, Márcia Motta, para a revista Caros Amigos:

Morreram vários Eric Hobsbawm. O que uniu este homem de tantas faces que escreveu durante décadas, tendo sido capaz de se reinventar ao longo de sua extensa trajetória? Certamente foi a defesa de um “engajamento legítimo”, de um historiador marxista que assumiu sua filiação teórica, tanto em condições históricas favoráveis, quanto em períodos em que o marxismo se tornou a “Geni” dos intelectuais. Muitos abandonaram o barco. Ele preferiu continuar a produzir o que mais sabia fazer: livros de história. Ao fazer isso, fez História e deixou uma marca indelével do que há de melhor no marxismo do século XX e XXI. Duvidam? Leiam o seu último trabalho: Como mudar o Mundo.

"Muitos abandonaram o barco. Ele preferiu continuar a produzir o que mais sabia fazer: livros de história. Ao fazer isso, fez História e deixou uma marca indelével do que há de melhor no marxismo do século XX e XXI"

Muito se fala sobre a sua quadrilogia, mas vale a pena explicar que ela não é um todo monolítico. As Era da Revolução e Era do Capital não têm a mesma leveza que terão os livros seguintes: Era dos Impérios e Era dos Extremos. Os dois primeiros, escritos respectivamente em 1962 e 1975, carregam o peso de uma síntese com excesso de dados factuais, prisioneiros de uma época, onde o acesso à informação ainda era muito limitado às bibliotecas. Hobsbawm tem ali a ânsia de tudo explicar e às vezes se perde nos detalhes e pouco explica; principalmente para o leitor não europeu. Os dois outros livros, Era dos Impérios e Era dos Extremos, escritos em 1987 e 1994, são marcados por uma renovação de estilo do autor. Ele continua a nos deixar desconfortáveis (não poderia ser de outra maneira), mas já encontra uma forma mais sutil para nos dizer “como o gato subiu no telhado”. Em a Era dos Extremos temos – a meu ver – a melhor síntese já produzida sobre o século XX. Mesmo o não marxista mais convicto o lê, ainda que de portas trancadas, num sábado à noite. É sem dúvida, uma lição de história e de erudição.

Tantos Hobsbawm

Mas há tantos Hobsbawm que não vale a pena tentar falar de todos. Mas é possível falar de alguns. Em 1959, ele escreveu um livro intitulado: Rebeldes Primitivos. Nesta obra, traduzida para o português em 1965, o autor procurou estudar o que chamaria das formas arcaicas dos movimentos sociais dos séculos XIX e XX e que ele consideraria como movimentos pré-políticos, como os bandidos, a máfia, os anarquistas, o comunismo camponês e as seitas operárias. Na ocasião, ele identificou que aqueles movimentos sociais respondiam à introdução do capitalismo no campo, criando e fortalecendo laços de parentesco ou solidariedade tribal para responder à desorganização social provocada pelo processo de institucionalização do que se convencionou chamar de individualismo agrário.

Banditismo

"A historiografia brasileira e latino-americana deve muito a estas primeiras abordagens sobre a rebeldia popular. É verdade que muitos hoje negam a história da história dos estudos sobre os protestos populares e há muita gente por aí 'reinventando a roda'"

Alguns anos mais tarde, Hobsbawm voltaria ao tema, agora mais centrado na questão do banditismo. Em 1969, ele publica Bandidos, traduzido no Brasil em 1975. Símbolo da resistência e da rebeldia dos mais pobres em face à riqueza e opressão dos fazendeiros ricos, os bandidos sociais podem se expressar na consagrada figura de Robin Hood, como um ladrão nobre que rouba dos ricos para dar aos pobres. Mas é preciso atentar as diferenças entre o mito que se constrói em seu entorno e a dinâmica de opressão que o bandistismo impõe numa sociedade camponesa. Ao introduzir o tema ainda em 69, com vários exemplos de bandidos presentes na Itália do século XIX, no México e no Brasil de Lampião, no início do século XX, este autor egípcio traz à luz um tema praticamente inédito naqueles anos. A historiografia brasileira e latino-americana deve muito a estas primeiras abordagens sobre a rebeldia popular. É verdade que muitos hoje negam a história da história dos estudos sobre os protestos populares e há muita gente por aí “reinventando a roda”, mas as novas reedições não nos deixam enganar. Como em qualquer obra, elas respondem às questões de uma época, mas como textos clássicos, elas inauguraram novas perguntas e inquietações dos historiadores. Logo, é sempre bom relê-las. Naquele mesmo ano de 1969, Hobsbawm escreveria, juntamente com George Rudé, a obra Capitão Swing, sobre o protesto camponês na Inglaterra do início do século XIX; outro exemplo notável de pesquisa histórica.

Invenção das Tradições

Entre tantos Hobsbawm, escolho mais um, o que organizou, juntamente com Terence Ranger o livro: A Invenção das Tradições, publicado pela primeira vez em 1983 e traduzido para o português no ano seguinte. Os não marxistas ficam desconfortáveis com este trabalho, pois tanto a introdução quanto o último capítulo são de autoria de Hobsbawm e são de uma erudição desconcertante. É certo que nem sempre ele acertou em seus estudos sobre o nacionalismo, e reconheceu isso. Quando em 1991, publicou Nações e Nacionalismo, ele sugeriu, nas últimas linhas deste belíssimo trabalho, que a fase do apogeu do nacionalismo já havia passado. O livro era o resultado das conferências que havia feito em Belfast em 1985. Logo depois, os acontecimentos de fins do século redesenharam – mais uma vez - a complexa relação entre globalização e nacionalismo. Os jornalistas foram atrás dele e lhe cobraram explicação. Hobsbawm não se fez de rogado: assumiu a incompletude das discussões sobre o nacionalismo e deu uma aula de erudição!

Revolução Francesa

Ousado, ele ainda escreveu um livro sobre historiografia da Revolução Francesa em Ecos da Marselhesa, publicado em 1990. Ali, ele assumiu não ser nenhum especialista em Revolução Francesa, mas colocou a maioria dos especialistas “no chinelo”. Atreveu-se a discutir um tema caro aos franceses e publicamente descortinou o seu enfrentamento com os historiadores que negavam a importância da Revolução Francesa para a humanidade. Mais uma lição: desta vez, de análise historiográfica.

Este autor era mesmo genial. Foi embora, já cansado, mas deixou uma obra simplesmente memorável.





Resposta da ANPUH à revista VEJA.


Eric Hobsbawm: um dos maiores intelectuais do século XX

Na última segunda-feira, dia 1 de outubro, faleceu o historiador inglês Eric Hobsbawm. Intelectual marxista, foi responsável por vasta obra a respeito da formação do capitalismo, do nascimento da classe operária, das culturas do mundo contemporâneo, bem como das perspectivas para o pensamento de esquerda no século XXI. Hobsbawm, com uma obra dotada de rigor, criatividade e profundo conhecimento empírico dos temas que tratava, formou gerações de intelectuais. Ao lado de E. P. Thompson e Christopher Hill liderou a geração de historiadores marxistas ingleses que superaram o doutrinarismo e a ortodoxia dominantes quando do apogeu do stalinismo. Deu voz aos homens e mulheres que sequer sabiam escrever. Que sequer imaginavam que, em suas greves, motins ou mesmo festas que organizavam, estavam a fazer História. Entendeu assim, o cotidiano e as estratégias de vida daqueles milhares que viveram as agruras do desenvolvimento capitalista. Mas Hobsbawm não foi apenas um “acadêmico”, no sentido de reduzir sua ação aos limites da sala de aula ou da pesquisa documental. Fiel à tradição do “intelectual” como divulgador de opiniões, desde Émile Zola, Hobsbawm defendeu teses, assinou manifestos e escolheu um lado. Empenhou-se desta forma por um mundo que considerava mais justo, mais democrático e mais humano. Claro está que, autor de obra tão diversa, nem sempre se concordará com suas afirmações, suas teses ou perspectivas de futuro. Esse é o desiderato de todo homem formulador de ideias. Como disse Hegel, a importância de um homem deve ser medida pela importância por ele adquirida no tempo em que viveu. E não há duvidas que, eivado de contradições, Hobsbawm é um dos homens mais importantes do século XX.

Eis que, no entanto, a Revista Veja reduz o historiador à condição de “idiota moral” (cf. o texto “A imperdoável cegueira ideológica da Hobsbawm”, publicado em www.veja.abril.com.br). Trata-se de um julgamento barato e despropositado a respeito de um dos maiores intelectuais do século XX. Veja desconsidera a contradição que é inerente aos homens. E se esquece do compromisso de Hobsbawm com a democracia, inclusive quando da queda dos regimes soviéticos, de sua preocupação com a paz e com o pluralismo. A Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil) repudia veementemente o tratamento desrespeitoso, irresponsável e, sim, ideológico, deste cada vez mais desacreditado veículo de informação. O tratamento desrespeitoso é dado logo no início do texto “historiador esquerdista”, dito de forma pejorativa e completamente destituído de conteúdo. E é assim em toda a “análise” acerca do falecido historiador. Nós, historiadores, sabemos que os homens são lembrados com suas contradições, seus erros e seus acertos. Seguramente Hobsbawm será, inclusive, criticado por muitos de nós. E defendido por outros tantos. E ainda existirão aqueles que o verão como exemplo de um tempo dotado de ambiguidades, de certezas e dúvidas que se entrelaçam. Como historiador e como cidadão do mundo. Talvez Veja, tão empobrecida em sua análise, imagine o mundo separado em coerências absolutas: o bem e o mal. E se assim for, poderá ser ela, Veja, lembrada como de fato é: medíocre, pequena e mal intencionada.

São Paulo, 05 de outubro de 2012

Diretoria da Associação Nacional de História
ANPUH-Brasil
Gestão 2011-2013 







Comentários

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...