OUTROS 24 DE AGOSTO

Hoje faz 58 anos do suicídio de Getúlio Vargas. Sua carta-testamento ainda é pra mim uma das fontes primárias mais fascinantes, apesar de não considerar simpática as atitudes do bom velhinho.

Numa análise mais crítica, percebemos que a carta apela para a visão personalista da política brasileira e para o sentimentalismo inerente ao populismo.


Lá vai o documento na íntegra: texto extraído daqui


"Mais uma vez, a forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero.

Não querem que o trabalhador seja livre.

Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.
Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão.
E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História."
(Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)

Minha opinião, se é que se considera, é a seguinte: analisar criticamente o discurso de Vargas.

  • Em
"Mais uma vez, a forças (sic) e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes."
temos a seguinte questão: mesmo em seu leito de morte, prestes a cometer suícidio, Getúlio Vargas não citou a que forças ele se referia nem de qual setor específico da sociedade ele falava. É sempre evasivo.

Nessa carta, muito bem escrita, a correção gramatical do presidente só lhe permite utilizar sujeitos indeterminados. Traído pela sua obediência à norma culta da língua portuguesa? Talvez. Contudo, Getúlio sabia que, caso expusesse nomes, o documento nunca chegaria a público.

No mesmo fragmento ainda, em laranja... defender os humildes?


Getúlio Vargas persiste em seu discurso nacionalista, a fim de apagar seu passado como ditador do imaginário popular, pautado na manipulação ideológica do seu eleitorado.
  • A seguir, em

"Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo."

percebe-se que Getúlio não admite, no entanto, os erros cometidos durante a ditadura do Estado Novo. Apoia-se ainda no discurso de quem criou a CLT. Esse documento, sabemos, teve o mérito de dar direitos e garantias aos trabalhadores, mas também foi uma manobra política que visava a neutralizar o movimento sindical.
Como? Através do fornecimento prévio de suas demandas. Esvaziava o discurso das mobilizações de classe e criava os sindicatos-amarelos.

Ainda nesse fragmento, Vargas fala sobre renúncia em vez de deposição do cargo ao final do Estado Novo e , claro, enaltece sua volta ao poder Executivo por via eleitoral.

São muitas ainda as incoerências entre discurso e prática política na carta, porém isso não afasta da importância do documento com fonte histórica do interregno democrático no Brasil.

Há quem diga que o suicídio de Vargas tenha postergado em 10 anos o golpe militar, que só veio a ocorrer em 1964, tamanha pressão daquela fase da Guerra Fria. 
História não é feita de "se"... 








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