MULTILATERALISMO E LEGITIMIDADE
O multilateralismo pode ser
definido como a atuação conjunta de Estados com base em instituições ou
princípios coletivos voltados para interesses comuns. Sua faceta contemporânea
surge a partir da criação da ONU (Organização das Nações Unidas), em 1945, que
tinha a finalidade de promover a paz, através do disciplinamento do uso da
força, e o progresso econômico, social e de direitos humanos. Uma de suas
consequências é a profusão de temas considerados essenciais para a diplomacia
atual, como meio-ambiente, direitos humanos e comércio internacional. Outro
aspecto é a ampliação dos espaços de proposição normativa em instituições
multilaterais (como ONU e OMC) ou em coalizões diplomáticas (como BRICS, IBAS e
a CELAC), permitindo a ação coletiva em torno de agendas comuns e, portanto,
maior horizontalidade entre os participantes.
Formada, inicialmente, por seis
órgãos (Assembleia Geral, Conselho de Segurança, Secretariado, Corte
Internacional de Justiça, Conselho Econômico e Social e o extinto Conselho de
Tutela), cabe destacar aqueles que apresentam maior ou menor simetria entre os
participantes. Enquanto o Conselho de Segurança, cuja função é arbitrar sobre o
uso da força, é o órgão mais assimétrico, tanto em representatividade (formado
por cinco membros permanentes e dez membros não-permanentes) quanto em voto (já
que o poder de veto produz entraves ao multilateralismo em questões de
segurança), a Assembleia Geral é o órgão mais simétrico. Isso se confirma pelo
grande número de membros (193, em 2015) e pelo direito igual de votos, em que
prevalece o critério da maioria.
Apesar das críticas e das
proposições, ao longo do tempo, por reformas administrativas, financeiras e
institucionais na ONU, suas ações foram relevantes para o desempenho da
governança global. O envio de missões de paz e de observação e acompanhamento
político, além da preocupação com temas sobre meio ambiente e crise de
refugiados manifestam que sua existência ainda evita que a ordem internacional,
principalmente após o fim da bipolarização ideológica entre Estados Unidos e
União Soviética, seja ainda mais fragmentada e conflituosa.
A partir do fim da Guerra Fria, as
capacidades militares dos Estados deixam de ser a única fonte de poder e de
legitimidade no sistema internacional. Em New
Wars and Old War, Mary Kaldor aponta para o surgimento de novos conflitos,
a partir da gradual perda de autonomia estatal, devido à transnacionalização
das Forças Armadas e do enfraquecimento de algumas economias, o que abriria
espaço para a privatização da violência e para o surgimento de novas
identidades políticas. A autora defende que apenas um processo político de
âmbito global recomporia a legitimidade estatal nas áreas desses novos
conflitos e restauraria o controle do uso da força pelas autoridades estatais. Nessa
lógica de difusão de poder, o multilateralismo assume importante papel na
criação de novas regras internacionais em detrimento do regionalismo e do
bilateralismo que vigoravam até antes da queda do muro de Berlim e do desmonte
do Estado soviético.
Com o fenômeno da globalização e
da multipolaridade indefinida, o multilateralismo intensificou-se em três
aspectos: ampliando o arcabouço das normas e das regras do sistema
internacional; concebendo soluções globais para problemas transnacionais (como
meio ambiente, terrorismo, narcotráfico); e disseminando valores globais que
sustentam a legitimidade internacional. Assim, o multilateralismo tornou-se uma
das necessidades do sistema internacional contemporâneo, sendo de suma
importância para países emergentes, por exemplo, a participação em foros
multilaterais, com o objetivo de aumentar sua relevância no contexto
internacional e a coibir o unilateralismo do poder bruto perpetrado pelas
grandes potências, já que uma ação baseada somente no interesse nacional é
contrária às regras de conduta multilateral.
O multilateralismo não se faz
premente apenas para os países emergentes. Fareed Zakaria defende que a
ascensão das economias emergentes impõe desafios à atuação dos Estados Unidos,
que deve acomodar as pretensões daqueles dentro de termos ocidentais. Dessa
maneira, garantir a presença da China, por exemplo, em instituições econômicas,
como Fundo Monetário Internacional (FMI), evitar acordos bilaterais, apoiar o
multilateralismo e defender a integração dos países emergentes são essenciais
para a manutenção de determinados aspectos da ordem ocidental no contexto de
pós-americanismo: a democracia e o liberalismo. Mesmo com possível e relativa
perda de peso no plano internacional, o caminho para uma potência seria traçado
pela ordem econômica ocidental capitalista e por suas instituições
multilaterais.
O mundo periférico clama por
maior representatividade no Conselho de Segurança, com destaque para África do
Sul, Índia e Brasil. A participação deste último, em especial, promoveria maior
representatividade, protagonismo e inserção da América Latina no sistema
internacional. O Brasil defende possuir as credenciais necessárias para
conseguir assento permanente no Conselho de Segurança, já que é (junto de
Japão) o país que mais vezes foi escolhido como membro rotativo, é membro
originário e contribui para o orçamento da ONU, tem destaque nas operações de paz,
considera-se o representante natural da América Latina pelas suas dimensões
continentais e localiza-se na zona mais desterritorializada do mundo,
contribuindo com a soluções pacífica de conflitos. O comportamento do
Ministério das Relações Exteriores obedece, portanto, a princípios pragmáticos
e realistas, mantendo negociações no plano multilateral, porque ainda não tem
capacidade suficiente para ditar sozinho as regras.
BIBLIOGRAFIA:
FONSECA JUNIOR, Gelson. O
interesse e a regra: ensaios sobre o multilateralismo. São Paulo: Paz e Terra,
2008.
MIYAMOTO, Shiguenoli. O Brasil e
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n. 1., 2000.
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Multilateralism matters: the theory and práxis of na institutional form. New
York: Columbia University Press, 1993.
ZAKARIA, Fareed. O mundo pós americano. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
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