O PODER LOCAL NO BRASIL, EM SUAS DIMENSÕES POLÍTICA, ECONÔMICA E SOCIAL, E A CRISE DO PACTO FEDERATIVO


Teoricamente, cabe ao pacto federativo harmonizar as demandas particulares de grupos localizados, através de arranjos institucionais que sejam capazes de controlar os conflitos inerentes aos interesses diversos. Contudo, no Brasil, tal definição não se encaixa.

Enquanto, o pacto federativo dos Estados Unidos fundava-se sobre uma estrutura dualista em que o processo de centralização política fundamental para a consolidação de um Estado foi adquirido através da adesão das unidades políticas já existentes, concordando com a soberania da União com relação a assuntos previamente discutidos, o projeto federalista brasileiro tomou outro rumo. Em vez de o Estado se apoiar sobre os princípios de separação dos poderes legislativo, executivo e judiciário, garantindo uma base institucional que permitisse a governabilidade democrática além da desconcentração do poder político, o Brasil adotou um movimento contrário.

Os mecanismos federalistas adotados, para a descentralização do poder imperial, como a definição das esferas federal, estadual e municipal, não garantiram a autonomia das decisões dentro de cada uma delas, tampouco assegurou o controle democrático da política. Desta forma, abriu espaço a formas de poder autoritárias traduzidas por um mandonismo local que ainda sobrevive nos dias de hoje, sob a forma de políticos que ainda garantem a preponderância de seus interesses sobre os demais.Os motivos para tanto consistem no fato de que a longa duração de determinada divisão territorial acabou por formar uma elite relutante por afirmar os seus interesses particulares.

O imaginário político local foi um dos responsáveis por tal característica. Longe de se conceber a unidade territorial como um artefato político que deve ser preservado pela União, criou-se o mito fundador do Estado brasileiro, em que a unidade é tomada como herança, forjada através de identidades ditas nacionais e da conquista territorial, visto que as fronteiras políticas nunca foram ou serão naturais.

A doutrina das fronteiras naturais nasceu da geografia e do direito do século XVIII, baseando-se na noção de que as nações eram predestinadas a ocupar determinados territórios, circundado por “fronteiras naturais”. Os geógrafos Karl Ritter, influenciado por Alexandre von Humboldt concebia a Terra como um organismo vivo, onde se materializava a vontade divina. Desta forma, as fronteiras existiriam antes de sua definição e delimitação efetivas, cabendo ao homem descobri-las nas tramas da natureza e sendo as do Brasil localizadas pelos cursos dos rios Uruguai, Paraguai, Guaporé e Mamoré e pelo vale drenado pelos afluentes do Amazonas.

Tal mito servia de motivo para a supressão de movimentos de caráter regional, em nome da unidade e, por conseguinte, da preservação da integridade do Império. Os pressupostos de uma identidade cultural foram, para muitos ideólogos e políticos, a melhor forma de se construir um pacto da nacionalidade. Além disso, permitiu a crença de que as fronteiras brasileiras foram, em sua maior parte, delimitadas na época colonial, o que é falso. A América portuguesa, é sabido, foi fragmentada em diferentes colônias submetidas à Coroa e seus contornos políticos flutuaram ao longo do tempo, em função das estratégias administrativas adotadas pela metrópole.

Percebe-se, pois, que a formação territorial do país deu-se em nome dos interesses das oligarquias regionais, participantes, direta ou indiretamente, do governo central, o que, por sua vez, não contribuiu para a divisão equânime entre aquelas, privilegiando uma sobre outras, de acordo com o que fosse mais inviável. O gerenciamento das demandas regionais ocorreu de forma a privilegiar uma sobre a outra, conforme a sua projeção territorial, ocasionando uma disfunção do aparato político-institucional com relação ao que apregoa o sistema.

Sendo a escala municipal a principal representante das demandas localistas, a estadual referente à mediação entre as demandas particulares e da União e a nacional relacionada ao direcionamento dos rumos da nação, cada uma delas seria responsável pala solução dos problemas intrínsecos as mesmas. Porém, na realidade, a partir dos dados levantados por Iná Elias de Castro, é patente a dificuldade da esfera estadual em resolver o seu conflito, devido, sobretudo, a ingerência das instituições disponíveis.

Esta segunda disfunção do Estado provém das dificuldades de se obter um aparato burocrático que venha a constituir uma verdadeira malha institucional, articulando o território nacional como um todo. Assim, agudizam-se a complexidade do poder decisório, o desperdício de recursos e a lentidão das ações perpetradas por ele, o que gera desníveis de poder entre as localidades.

Esta é a terceira disfunção: o predomínio de interesses de uma área de influência sobre as demais. Tal fato ascende à questão sobre o poder de barganha dos agentes territoriais, as disputas locais e regionais para inversões públicas ou privadas. A centralização de finanças e poder nas mãos da União fez parte da realidade autoritária dos anos de ditadura, quando, contudo, não se desprezaram alianças vantajosas com grupos regionais afinados com os pressupostos do ideário central, o que deu origem a um fenômeno contraditório: o fortalecimento do poder real e a permanência do poder das elites locais.

Aí reside outro fator crucial para se compreender o federalismo brasileiro. A não-equidade da distribuição de recursos da União dificulta ainda mais o cumprimento de sua função social mínima. Uma redistribuição das finanças para os níveis estadual e municipal culmina no enfraquecimento do Estado como regulador e alocador de recursos, além de significar um ganho inexpressivo mediante as suas possibilidades de recorrer aos cofres públicos, na esfera estadual, e aumentar a receita disponível, no plano municipal. O descompasso, no entanto, entre os recursos de origem tributária e dispêndio da elite representada pelo poder político local pode vir a gerar uma crise fiscal local que ocasionará um abismo cada vez maior, dado o crescimento desigual e ao endividamento crescente.

A chamada “privatização do Estado” fez com que se adotasse a lógica da maior rentabilidade capitalista, através da valorização do setor econômico sobre o social, o que gerou o fortalecimento do poder político local, entendido como uma esfera do Estado capitalista, em relação o poder local.

O poder político local é regido pelo poder econômico, no nível material, e pelo poder social oriundo das elites e dos movimentos sociais locais, no nível simbólico, que constitui papel de destaque.

O poder econômico local é representado pelo conjunto de setores capitalistas, que buscam influenciar nas decisões políticas municipais, cuja lucratividade depende das ações do poder político local. Embora o grande capital não corresponda a este tipo de influência, as ações do poder político local recorrem mesmo aos interesses daquele, a fim de assegurar a regulação monopolista característica do Brasil, como foi o caso dos fenômenos do coronelismo – nas regiões rurais –, do populismo – no espaço urbano – e do clientelismo – troca de voto por favores – em que este núcleo dominante conseguiu se impor sobre os demais.

O poder social, por sua vez, é representado por atores de origem heterogênea, como profissionais liberais, empresários, que, na qualidade de formadores de opinião pública, buscam influir nas decisões municipais, baseados em suas próprias instituições, sejam estas associações, clubes, etc. Os meios de comunicação também interagem com estas prerrogativas, atuando com atenuadores dos conflitos sociais e homogeneizadores sociais, o que contribui para a legitimação do poder político local. Além desta faceta, há o poder social proveniente dos movimentos sociais de igual caráter simbólico, entretanto, de composição homogênea e estandarte de superação de uma carência comum à classe trabalhadora.

Há, apesar da reorganização da gestão territorial brasileira, questões fundamentais a serem superadas para que se conceba um pacto federativo democrático e distributivo, visto que nem a redução de papel do estado serviu para a elaboração de um projeto alternativo que viesse a ser preenchido pelas demais escalas territoriais. Todavia, o fortalecimento da esfera municipal garante uma maior possibilidade de controle e organização da sociedade civil, ao contrário do período ditatorial, em que houve um intenso processo de despolitização, mesmo que houvesse eleições diretas para os municípios.

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