OS ANARQUISTAS E SEUS INSTRUMENTOS DE LUTA NO BRASIL


– O mal verdadeiro, o único mal, são as instituições e as ficções sociais, que se sobrepõem às realidades naturais– -tudo, desde a família ao dinheiro, desde a religião ao Estado. A gente nasce homem ou mulher–  quero dizer, nasce pra ser, em adulto, homem ou mulher; não nasce (...) nem para ser marido, nem para ser rico ou pobre, como também não nasce para ser católico ou protestante, ou português ou inglês.”
Fernando Pessoa [1] Post sobre isso aqui.
        
O próprio título do conto “O Banqueiro Anarquista”, seu único publicado ainda em vida, revela um oxímoro, ou seja, inclui uma contradição intrínseca. Contudo, o autor brinca com o fato de que o anarquismo, como agremiação político-ideológica, em si, sob credo e dirigismo únicos para todos nega um de seus principais pressupostos, o de egocentrismo libertário de individualidades, vindo a constituir, pois, um sofisma. Poderia, portanto, abarcar, nas fissuras aparentemente lógicas de seu egocentrismo libertário, um banqueiro, que, para ser um autêntico anarquista, buscando abolir todo e qualquer tipo de construção social, negaria mesmo o dirigismo ideológico-partidário do próprio anarquismo.

Esta brincadeira provocadora e inteligente, que leva o pensamento dedutivo ao seu extremo, é bastante interessante no que tange sua apropriação literária. Principalmente, se considerarmos as crenças de Pessoa – um liberal convicto – e o caldeirão ideológico em que ele se encontrava, percebemos que o autor termina por defender o individualismo e liberalismo e esvazia a real importância deste movimento rumo à concretização de seus objetivos.

Na história da atuação da classe trabalhadora no Brasil, por exemplo, é inegável que, de 1906 a 1920, os anarquistas foram um dos maiores responsáveis pelo novo tom que caracterizou o perfil dos setores organizados do movimento operário. O anarquismo desempenhou um papel fundamental no contexto em que a classe operária buscou se afirmar enquanto força social autônoma, organizando um movimento político próprio e produzindo suas próprias práticas e manifestações culturais.




Dessa forma, o anarquismo foi uma das formulações que buscou construir a identidade da classe trabalhadora, defendendo não só uma auto-imagem de trabalhador, como principalmente um certo tipo de engajamento e luta com dimensões e objetivos específicos. Os anarquistas defendiam uma outra estratégia de luta para a conquista de uma nova identidade para os trabalhadores na sociedade. Nesta, a idéia de política era redefinida, e é a partir dessa redefinição que as questões dos interesses econômicos dos trabalhadores e de sua participação podem ser entendidas.

Nesse sentido, para compreendermos um pouco melhor sobre a contribuição dos anarquistas no processo de construção de uma identidade coletiva para a classe trabalhadora no Brasil e as suas propostas de luta – que estiveram estreitamente relacionadas com os projetos de emancipação social e intelectual defendidos pelos anarquistas – é importante observarmos primeiramente algumas idéias fundamentais do anarquismo.

 Entre essas idéias está a recusa da definição de política como disputa eleitoral e como prática partidária e parlamentar, determinando, como objetivo para a sua dominância doutrinária e organizacional, a negação da política liberal. Segundo George Woodcock, o anarquismo pode ser tratado como um sistema de pensamento social visando a modificações na estrutura da sociedade com o objetivo de substituir a autoridade do Estado por alguma forma de cooperação não governamental entre indivíduos livres.

A concepção anarquista acerca do caráter do Estado é entendida como a corporificação da idéia de autoridade, correspondendo à necessidade subjetiva da classe dominante de contar com um instrumento de tal natureza.  O anarquismo prega que o Estado é a fonte da maior parte dos problemas sociais, e que existem formas alternativas viáveis de organização voluntária. Desse modo, de acordo com Woodcock, o anarquista seria por definição, “o indivíduo que se propõe a criar uma sociedade sem Estado”. [2]

 Além disso, os anarquistas vêem a liberdade e a solidariedade dos homens como resultados de um processo de conquista; a sociedade a ser alcançada deve ser um produto deste processo, não podendo ser inteiramente predeterminada. A nova sociedade se organizaria por meio de associações pequenas, voluntárias e autônomas, onde não haveria a autoridade de um patrão e onde a propriedade privada se transformaria em propriedade social.

O individualismo e o próprio conceito de liberdade anarquistas remetem a uma maneira diferente de pensar o conceito de sociedade, ou seja, de coletividade que integra os indivíduos. Nesta visão, sociedade e indivíduo estão em harmonia, na medida em que são os valores individuais de aperfeiçoamento permanente do homem que se tornam os valores da sociedade da qual o homem faz parte. A coletividade construída não possuiria fronteira de interesses, contrapontos e, sobretudo, não poderia ser pensada em termos da dicotomia indivíduo/sociedade.

Assim, tal projeto de organização social, fundado em pequenas associações definidas como comunas, destina-se a operar uma sociedade industrial capaz de assegurar bem-estar a todos os seus membros. Uma sociedade não-competitiva – sem mercado e sem Estado – e com um preciso projeto moral. A necessidade da preparação moral do operariado para esta futura sociedade era um argumento sempre presente para justificar a importância da propaganda e das iniciativas na área cultural. 

Em relação à questão organizacional, os anarquistas tinham uma proposta inovadora ao combater rigorosamente a opção socialista pelo partido político e ao criticarem a antiga tradição associativista de bases beneficentes experimentada pelos trabalhadores. Desse modo, eles propunham como base fundamental para a construção da solidariedade operária – e para a criação de um sentido de pertencimento a um grupo – a atuação de sindicatos. Este novo tipo de organização se caracterizava pelo abandono das práticas assistencialistas e pela firme postura da ação direta ante o patronato e o Estado.

Dessa forma, segundo Angela Gomes, “as questões da relação entre a classe trabalhadora e o sindicato, bem como as questões da relação entre o sindicato e a doutrina anarquista, marcaram profundamente o projeto anarquista de constituição dos trabalhadores como um ator político”[3]. A grande utilidade do sindicato era ser um campo fértil para semear idéias e permitir que os anarquistas entrassem em contato com os trabalhadores, ganhando assim sua confiança e adesão. Esta proximidade era essencial para conduzi-los à uma revolução social e não simplesmente à revolução política.

Os anarquistas esperavam que na ação concreta e na observação empírica das contradições entre capital e trabalho, evidenciada nos confrontos, estivesse a grande lição a ser apreendida pelos trabalhadores. Essa era a garantia, segundo eles, da aquisição de princípios ideológicos, não pela pregação retórica, mas pela prática da ação cotidiana e revolucionária das massas. Além disso, estava claro que não se tratava exclusivamente de uma luta reivindicativa e política; o problema, e aí residia a opção pela ação no campo sindical, estava na contradição ou realidade fundamental do capitalismo.

Nesse sentido, o princípio da ação direta era basicamente caracterizado como um método de organização sem delegação de poder, sem representação de corte liberal. Os trabalhadores lutariam diretamente contra as autoridades públicas e contra os patrões, desenvolvendo vários procedimentos, desde os mais pacíficos até aqueles em que teriam que recorrer à força. Uma greve poderia ser empregada tanto como um expediente de resistência e defesa pacífica, quanto como uma forma mais impositiva e violenta de realizar conquistas.

Segundo Alexandre Samis, o quantitativo de greves no Brasil deve muito de seu montante às organizações operárias revolucionárias. Todas estas manifestações reivindicatórias tinham forte inspiração anarquista. Mesmo aquelas paralisações que estouravam, independentes, em alguns casos, de direções reformistas, eram tributárias do caminho aberto, formando uma verdadeira cultura reivindicatória, pelos libertários. 

A ação anarquista, no que se refere às atitudes adotadas pelos operários para a consecução de objetivos imediatos, obedeceu a distintas táticas em função dos diversos entendimentos que tiveram os grupos operários, relativos às resoluções congressuais. Com efeito, esta ação foi, a partir da imprensa burguesa, no decorrer das primeiras décadas do século XX, marcado pelo estigma da violência irracional e sem propósito definido.

Contudo, o ponto central que dava caráter revolucionário ao método de organização não era o uso da violência, mas o fato de que se estava recusando todos os paliativos políticos e associativos liberais, como por exemplo, os partidos parlamentares e a ação eleitoral. Nesse sentido, o anarquismo era uma forma política de pressionar diretamente os dominadores através da utilização de conversas, debates, boicotes, sabotagens, denúncias, greves e levantes. A realização desta estratégia implicava uma outra dimensão do método anarquista: a organização livre e espontânea dos trabalhadores em  associações, já que só assim o instrumento organizacional escaparia da armadilha e da autoridade, para converter-se em alavanca da liberdade.

Além disso, o “espírito da ação direta” fundava-se na luta pela liberdade, o que implicava não apenas ser livre do patrão, mas também de todos os guias e dogmas políticos ou religiosos. A crítica desenvolvida às instituições e à cultura da sociedade de classes marchava à tentativa de criar uma cultura e uma moral próprias como núcleos alternativos de formação de um homem novo.  Segundo Boris Fausto, “a utopia anarquista tem paradoxalmente uma grande contemporaneidade. Para além da defesa de pontos tópicos, há uma tentativa de criação de uma subcultura, buscando modelar um homem em contraposição ao que é fruto da sociedade de classes, abrangendo aspectos amplos como a educação ou um código moral, com suas normas e sanções implícitas”. 4

O anarquismo brasileiro oscilaria entre a crítica das instituições com o enfoque apontado e a que correspondia aos interesses da burguesia ascendente. Isto transparece claramente no ataque à educação vigente e à Igreja. No primeiro caso, os esforços estavam permeados, de um lado, pelos objetivos de oferecer um modelo educativo que representasse uma contrapartida à formação ministrada pelo sistema dominante, sob forma laica ou religiosa; de outro, pelos objetivos de desenvolver uma instrução racional, uma rígida separação de fronteiras. Os anarquistas defendiam escolas mistas, sem exames, sem promoções, sem castigos ostensivos, combinando um currículo convencional com a difusão dos princípios anarquistas refletida nas festas e comemorações. Já no segundo caso, criticavam o papel da Igreja, destacando que esta é um instrumento fortemente articulado de repressão da sexualidade.

Para os anarquistas, a arte engajada e a educação para a consciência de classe eram tão importantes quanto à luta concreta vivenciada nas sedes sindicais e nos confrontos de rua. No contexto desta grande discussão sobre o que era o anarquismo e sobre quais eram suas relações com o movimento sindical, pode-se dimensionar a preocupação dos libertários com a educação dos trabalhadores. De certa forma, era através deste longo processo de formar consciências e criar vontades para a ação que sua proposta de luta poderia caminhar e consolidar-se. A multiplicidade de iniciativas culturais que eles encaminharam e o valor que lhes atribuíram explicitam o projeto de identidade coletiva que buscavam construir, ao mesmo tempo em que se vinculam às dificuldades que encontravam para mobilizar o operariado através dos sindicatos de resistência.

 Um exemplo disto foi o papel que os jornais anarquistas e operários desempenharam. Estes, conforme Boris Fausto, se constituíram em um dos principais centros organizatórios anarquistas e de difusão de propaganda. Veículo de expressão escrita, transformou-se também com freqüência em veículo oral, no ser lido em voz alta para os trabalhadores analfabetos. Os periódicos espelhavam as condições do movimento social e se esforçavam por ressaltar uma linha política associada ao noticiário da vida dos trabalhadores nas empresas, das tentativas de organização sindical e greves. Neles, despontam as figuras femininas simbolizando a liberdade, os poemas acadêmicos que exaltam a emancipação futura e a miséria presente dos trabalhadores.

A Voz do Trabalhador – jornal explicitamente anarquista do Rio de Janeiro –   assumia as posições do anarco-sindicalismo, convertendo-se em um exemplo de equilibrada combinação entre a divulgação teórica, a propaganda, a temática do movimento operário. Também constituiu-se em um canal de expressão dos problemas dos trabalhadores no nível da empresa. Dessa forma, os jornais não eram apenas veículos unilaterais de informação, eles suscitavam mensagens instando à organização e à luta, a mobilização e a integração do trabalhador à causa de sua emancipação.

Associados às iniciativas educacionais e sindicatos, estavam os grupos de teatro. Muito numerosos à época, chegaram mesmo a profissionalizar alguns atores operários que organizariam as primeiras entidades representativas da classe artística no Brasil. Peças como Primo Maggio, de Pietro Gori; O Pecado de Simonia e A Greve dos Inquilinos, de Neno Vasco; Avatar, de Marcelo Gama e outras foram encenadas à exaustão para diversas platéias, em momentos distintos. Estas possuíam argumentos de conteúdo social, capacitando as companhias teatrais para o exercício da conscientização e educação das platéias, invariavelmente constituídas por operários.
Desse modo, segundo Foot Hardman, o teatro social poderia realizar a catarse totalizadora de uma nova ordem fundada na solidariedade e emancipação humanas. Nesse sentido, “o teatro é meio, é uma ”arma” destinada a “fazer rebeldes”, sendo grande somente na medida em que subordina, eficazmente, “a forma à idéia libertária”[4]. Os trabalhadores viviam as figuras do operário consciente, do ex-operário que ascendeu e se corrompeu pelo dinheiro, do patrão explorador, do alcoólatra etc.

O envolvimento de intelectuais com o movimento operário foi, também no Brasil, significativo. A temática principal dos romancistas sociais era a questão social, exposta em todos os seus aspectos, variedades, formas e estilos. Para Hardman, uma constatação a fazer sobre a literatura anarquista militante é sua diferença em relação à literatura social produzida após o Modernismo que, apesar da proximidade temática, inscreve-se no contexto sócio-cultural e numa vertente literária diversa. Há uma aproximação da temática do desterro social e da marginalização urbana, tão a gosto da literatura anarquista.

O processo de conquista dos espaços públicos também foi um longo capítulo no processo de posição de força do movimento operário. A época da exploração dos festivais proletários é a época do grande ascenso mobilizatório do movimento operário. A força momentânea da classe e de tal movimento permitiam que os núcleos libertários de propaganda procurassem e identificassem esse novos espaços.

Assim, o fato de os anarquistas terem sido os principais pioneiros em atividades como teatro, educação musical, práticas de leituras, criação de escolas e universidades populares, não é casual. E, por esta razão, não é casual também que velhos militantes operários, anarquistas ou não, considerem até hoje que foi educando que os libertários mais contribuíram para a constituição da identidade da classe trabalhadora. Os anarquistas enriqueceram a palavra operária ensinando a esta classe seu significado através de múltiplos instrumentos, pensando a cultura como meio fundamental de emancipação.


[1] PESSOA, Fernando. O Banqueiro Anarquista, Rio de Janeiro, José Olympio, 2006, P. 35.
[2] WOODCOCK, George. “Anarquismo: Introdução Histórica”. In: WOODCOCK, George (org) – Os Grandes Escritos Anarquistas, L&PM, Porto Alegre, 1981. P. 13

[3] GOMES, Ângela de Castro – “O Anarquismo: outra sociedade, outra cidadania”. In: A invenção do Trabalhismo. Vértice / IUPERJ, Rio de Janeiro, 1988. P. 92.
[4] HARDMAN, Francisco Foot. Nem Pátria nem Patrão. Vida operária e Cultura Anarquista no Brasil. Brasiliense, São Paulo, 1979. P. 90

Comentários

Unknown disse…
Oi gente meu nome é rannyelli eu to muito feliz de copartilhar tudo que em na minha cabeça ...eu so queri dizer que obg que asseçou o rockeira moderna e é isso valeu..........
A PROFESSORA disse…
Obrigada, Rannyelli!
Volte sempre!
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